A palavra "ver" apresenta muitos significados. Como verbo, pode-se entendê-la como olhar, enxergar, mirar, observar, contemplar, mas como substantivo, o vocábulo adquire outros significados: opinião, entendimento, análise, parecer, concepção e, ouso incluir, percepção. Quantas vezes sugerimos às pessoas que procurem ver por um ponto de vista diferente? Nesse momento, ver não seria apenas olhar ou enxergar, e sim uma renovação na forma de perceber alguma coisa. Quando olhamos uma pessoa, não quer dizer que estamos vendo-a. Quando compreendemos a dinâmica da vida, dos sentimentos, dos sonhos, dos pensamentos dela, então podemos dizer que estamos vendo-a. O olhar transporta ao mecanismo fisiológico do olho a aparente superfície das coisas. A visão tem em vista acolher uma dimensão holística e profunda dos entes.
Bom, os olhos, às vezes, necessitam de um instrumento postado acima do nariz para enxergar a realidade. São os óculos. Lentes cuja função é de aperfeiçoar o olhar. Quem os usa sabe como é importante para a vida de quem tem alguma limitação na função ocular. O avanço da medicina traz, como recurso, cirurgias que permitem às pessoas a alegria de contemplar o mundo de forma renovada.
Ocorre que encontramos resistências em melhorar a maneira de enxergar. Demorou um bom tempo para eu ver que meus olhos não estavam enxergando bem. Um bom tempo se passou até perceber que ler um livro com os braços esticados significava a carência de óculos para corrigir o problema. Que alegria, ao colocá-los e perceber as frases mais límpidas. O tempo passou e de novo os braços, gradativamente, voltaram a se esticar, era o aviso de que as lentes dos óculos não estavam boas, precisavam de novas. É aqui a provocação desta reflexão. A demora em perceber que algo não está satisfatório às nossas necessidades.
Memórias antigas impedem a assimilação de novas recordações. Além disso, podem resultar na limitação de vivenciar experiências inéditas que gerarão boas, refrescantes e claras lembranças.
Certo dia, vi uma pessoa contemplando a vitrine de uma loja. Parecia hipnotizada com as armações que sonhava em adquirir. Disse usar seus óculos há mais de dez anos e gostaria de trocar. Ano depois, reencontrei-a, lembrei-me da conversa e perguntei se teria comprado a nova armação e as lentes que tanto desejava. Grande a surpresa quando ela respondeu que sim. “Você não gostou do novo modelo e das lentes novas? ” Indaguei. “Sim, tudo mais bonito, moderno, ficou muito melhor para mim, enxergo melhor, mas ainda não consigo abandonar os óculos antigo. Tenho tantas lembranças de tudo que vivi usando-o.” respondeu. Soube, depois, que ela passou a usar, definitivamente, os novos óculos.
Penso que, quando recusamos ver melhor, somos como um recipiente completo por memórias e crenças antigas. São elas que criam um anteparo entre uma experiência de vida melhor e nós. Pior ao portar óculos velhos e com lentes que já não correspondem à necessidade do olhar. Assim, não há espaço para algo novo se acomodar no recipiente. O medo bloqueia a retomada do caminho. Para que olhar adiante e arriscar posicionar o pé à frente do corpo e seguir, se há o apego ao conforto, ou desconforto, de tudo aquilo que já ficou no passado? O presente é sempre uma provocação em dar o primeiro passo rumo às infinitas possibilidades que o caminho novo oferece.
Óculos novos são como rupturas ao olhar embasado diante da realidade. Olhar permite a captação passiva dos elementos ao redor. Ver é perceber, é atividade diante da realidade vista. É evidente que toda subjetividade influencia a visão. Velhas memórias apontam interações velhas; desejo de interação nova, possibilidade de memórias renovadas. As lentes novas são anteparos entre a visão e a percepção. Na Bíblia, em Mc 4, 12, “para que olhando, olhem e não vejam…” E é exatamente isso que ocorre, existem pessoas que olham e não veem, o distúrbio na visão pode ser espiritual ou psicológico. Uma outra ilustração poderosa é o “Mito da Caverna” de Platão, onde as pessoas viviam no interior da caverna olhando e nomeando sombras e quando alguém se libertou e olhou para fora, viu uma realidade renovada, iluminada. Desceu, comunicou aos outros, que, no entanto, não aceitaram e optaram em permanecer como meros contempladores de sombras. Enxergavam, mas não viam. Negaram-se a subir e testemunharar coisas em si, envolvidas pela iluminação.
Lembro de um filme que assisti há vários anos. Procurei-o pela internet, mas não o encontrei. Salvo engano, chamava-se “A última corda”. A história é mais ou menos assim: havia um mestre em um mosteiro que perdeu a capacidade de olhar. Ele tocava um instrumento de cordas parecido com um violão. Muito irritado com sua condição, procurou conselhos de um sábio que lhe disse que sua visão voltaria quando arrebentasse a última corda de seu instrumento musical.
Um tanto desconfiado, ele acreditou no sábio. Não bastava arrebentar as cordas, tinha de usá-las nas músicas que tocava. Intensificou sua música no mosteiro, mas sem êxito no propósito. Sentiu que teria que deixar o mosteiro para usar mais ainda o instrumento musical. Sem enxergar, pediu que algum de seus discípulos lhe acompanhasse na aventura. Assim, saíram ele e o discípulo a visitarem os vilarejos da região.
Em cada visita, eram recebidos com alegria, não era comum os monges tão próximos das pessoas. Se instalavam na vila por alguns dias e traziam mais alegria. Os moradores da vila ficavam agradecidos e maravilhados com a talentosa música e com a presença dos monges. Assim, que uma corda partisse, trocava-a e seguia para outra vila com a ajuda do discípulo.
Após passar por várias visitas, certo dia, a última corda do instrumento arrebentou. Ele suspirou e esperou ansiosamente pela volta da visão. Nada. Em sua bolsa havia uma reserva de cordas. Julgou que o sábio se referiu, na última corda que carregava consigo. Continuou sua caminhada. Acontecia que, em alguma vila, passavam-se meses até uma corda se romper. Então, no dia em que, de fato, a última corda que ele tinha partiu, havia passado anos. Quando isso aconteceu, ele e o discípulo pularam de alegria. Mas, surpreendentemente, não voltou a enxergar. “Será que o sábio mentiu para mim. Não acredito. ” Nesse dia, muito triste, adormeceu e sonhou com os lugares por que passou. Viu, em seus sonhos, as incontáveis pessoas que ouviram sua música. Sentiu a alegria, o vento, o riso das crianças, a gratidão de jovens que aprenderam a arte musical, o caminho sob seus pés, a companhia fiel de seu discípulo, os testemunhos de cada povoado de como aquela presença transformou sua vida.
Ao despertar, ele se deu conta de que o sábio havia afirmado que ele voltaria a ver, mas não a enxergar. Isso fazia sentido, já que sua agressividade, irritação e inconformismo estavam afetando todo o convento. Dirigiu-se ao discípulo e, com alegria, anunciou: “Recuperei minha visão, você está livre para seguir em frente. Eu sou muito velho e não posso retornar ao convento, estamos longe demais, ficarei por aqui. Finalmente entendi o significado dessa missão. Fui um pouco egoísta, concentrei-me apenas em mim, mas ao recordar todas as boas experiências que minha música proporcionou nos lugares que visitamos, posso afirmar sinceramente: voltei a ver.”
A realidade tem as cores que oferecemos, o “Mito da caverna” reflete nossa jornada. É como se ele habitasse em nós. Há dias em que dedicamos nossos olhares às sombras e há dias em que preferimos ver na luz. O passado é como imagens continuamente projetadas nas paredes da caverna. Reverberá-lo é como se preferíssemos nomear as sombras que ele deixa em nossas vidas. Um dia, soltamo-nos das correntes e vislumbramos a claridade que a luz oferece para vermos muito melhor. No primeiro momento, os olhos ardem um pouco, até porque queríamos acostumar-nos com a vida da imersão na caverna, mas logo passa o desconforto e chega a visão de que a luz oferece mais. Mais vida, mais alegria, mais amor, mais disposição, mais liberdade, mais certezas, mais conhecimentos, mais sabedoria, mais vontade de seguir em frente.
E agora? Está na hora de trocar seus óculos? E se estiver, caso necessite deles, aproveite para fazê-lo. Deixe as velhas memórias de lado, abandone as justificativas vitimistas, desabite a caverna da escuridão, creia no poder que o caminho iluminado propõe, agradeça aos óculos antigos, deixe-os ir e receba com alegria e gratidão os novos, com a nova forma de olhar e ver o mundo. Você merece sempre as melhores realidades. Celebre e siga com a nova visão.